“contemplar o céu para comprometer-se com o mundo”
“A maior consolação que descobrira era contemplar o céu e as estrelas. Fazia-o muitas vezes e por muito tempo, porque com isto sentia em si um grande desejo para servir a Nosso Senhor” (S. Inácio)
“Ressurreição”, “Ascensão”, “sentar-se à direita de Deus”, “envio do Espírito”, são todas realidades pascais.
Em todas elas queremos expressar a mesma verdade: o final “deste Homem”
Jesus, não foi a morte, mas a Vida. O mistério pascal é tão rico que
não podemos abarcá-lo com uma única imagem; por isso temos que
desdobrá-lo para ir aprofundando calmamente e expressá-lo no nosso modo
de viver o seguimento de Jesus.
Os três
dias para a Ressurreição, os quarenta dias para a Ascensão, os cinquenta
dias para a vinda do Espírito, não são tempos cronológicos, mas
teológicos. Eles nos revelam a maneira de ser de Deus, não o tempo em
que Ele atua.
A
Ascensão nos faz refletir sobre um aspecto do mistério pascal. Trata-se
de descobrir que a posse da Vida por parte de Jesus é total. Participa
da mesma Vida de Deus e, portanto, está no mais alto do “céu”.
Nem Mateus, nem Marcos, nem João, nem Paulo, mas somente Lucas, no final
de seu Evangelho e, mais detalhadamente, no começo dos “Atos dos
Apóstolos”, narra a Ascensão como um fenômeno constatável pelos
sentidos.
Lucas,
em seu Evangelho, põe todas as aparições e a Ascensão no mesmo dia. No
entanto, nos Atos dos Apóstolos, ele fala de quarenta dias de
permanência de Jesus com seus discípulos, provavelmente como um modo de
indicar que eles haviam recebido a formação necessária para levar
adiante a missão (“quarenta dias” com o mestre era o tempo que o
discípulo precisava para alcançar uma preparação adequada).
Ao
mistério da Ascensão corresponde o mistério da Kénosis (esvaziamento) do
Verbo; o Deus que se despojou de sua glória e majestade e se fez homem,
agora é elevado aos céus e com Ele toda a humanidade redimida e
divinizada. Em Cristo, a humanidade inteira já se encontra envolvida por
Deus; em Cristo, céu e terra se encontram. Celebrando a glorificação de
Cristo, tomamos consciência de nossa própria vocação à glória. Ao
celebrarmos a entrada de Jesus na glória, não celebramos uma despedida,
mas um novo modo de presença; celebramos que Ele é, realmente, o
Emanuel, o Deus-conosco para sempre.
No
Evangelho de Marcos, a despedida de Jesus é descrita com singeleza; não
produz tristeza, mas alegre confiança, enquanto os discípulos se
preparam na oração para assumir a missão. Ao partir para o Pai, Jesus não nos abandona,
pois realizou uma comunhão definitiva com a humanidade, garantindo a
ela um destino de plenitude. Ele subiu ao céu para abrir-nos o caminho,
mas agora é o Espírito aquele que nos move e nos conduz ao Pai. Cabe a
nós, agora, esforçar-nos em fazer o nosso êxodo, sob a ação do mesmo
Espírito e confiantes na fidelidade de Deus.
A
Ascensão de Cristo ao céu nos torna encarregados da missão à qual Ele,
em sua glória, preside. Nós é que devemos reinventá-la a cada momento.
Portanto, a Ascensão de Jesus marca o início de nossa missão, ou seja, um novo modo de presença no mundo. Viver
com os olhos voltados para o Senhor glorioso não nos dispensa de estar
com os dois pés no chão, afundados na terra da história. Na
dinâmica do Tempo Litúrgico, após uma longa e criativa caminhada com
Jesus, a liturgia nos faz “desaparecer em Deus” , como o Cristo da
Ascensão “desapareceu em Deus”. Não há mais nada a não ser Deus. A
Ascensão é abertura para o cotidiano, para a realidade do serviço. É
preciso partir e viver o chamado do Mestre ao longo da experiência.
Na
Ascensão, enquanto Jesus “sobe” ao Pai, nós “descemos” à realidade para
transformá-la, tornando presente o Reino. Quando amamos, cuidamos,
servimos... nos elevamos. O que nos eleva está em nosso interior. E nos
elevamos à medida que descemos em direção à humanidade. Essa Ascensão
não pode ser feita às custas dos outros, senão servindo e cuidando de
todos. Como Jesus, a única maneira de alcançar a meta é descendo até o
mais fundo. Aquele que mais desceu, é o que mais alto subiu.
A Ascensão é o lugar onde vai acontecer uma mudança profunda na vida de cada seguidor de Jesus: partimos para a missão;
deixamos a Terra Santa, como os Apóstolos, e até o fim da vida seremos
os peregrinos de Cristo. Somos arrancados de tal experiência para
adentrar-se em um caminho de seguimento de horizontes desconhecidos, mas
centrados no compromisso apostólico da missão na e da Igreja.
“Passamos”
da particularidade de um lugar para a universalidade da missão. O
desejo de seguir e servir a Cristo abarca o mundo todo. Nossa meta, como
a de Jesus, é ascender até o mais alto, o Pai. Mas tendo em conta que
nosso ponto de partida é também, como no caso de Jesus, o mesmo Deus.
Muitas vezes preferimos seguir um Jesus no “céu”. Descobri-lo dentro de si mesmo, nos outros e no mundo é demasiado exigente e comprometedor. Muito mais cômodo é continuar olhando para o céu... e não sentir-se implicado naquilo que está acontecendo ao nosso redor.
A festa da Ascensão nos revela que vivemos o “tempo do Espírito”, tempo de criatividade, de ousadia, de novidade...
O Espírito não proporciona aos seguidores de Jesus “receitas eternas”.
Por isso, não podemos ficar olhando para cima. O Espírito nos dá luz e
inspiração para voltar a cabeça para a realidade, buscando caminhos
sempre novos para prosseguir hoje a missão de Jesus. Torna-se necessário
descruzar os braços, deixar de olhar passivamente para o céu e, com os
pés plantados no chão, prosseguir a obra iniciada por Jesus.
O mistério da Ascensão nos sensibiliza e nos capacita para aproximar-nos do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade.
A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com
a realidade tal como ela é. Ascensão nos convida a olhar o mundo como
“sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança
que existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela
compaixão e por isso gerado de misericórdia; um olhar que compromete
solidariamente.
Enfim, a
celebração do mistério da Ascensão nos impulsiona, ao mesmo tempo, para
Deus e para o mundo. Paixão por Deus e paixão pelo mundo. Podemos assim
estar sempre enraizados firmemente em Deus e, ao mesmo tempo, imersos
no coração do mundo. O cristão é tão familiar com Deus que admira e se
encanta com a variedade e a multiplicidade do mundo, e não teme o mundo
com toda sua complexidade. Ao mesmo tempo, é tão familiar com o mundo
que sente o Espírito de Deus que trabalha em todos os lugares e da
maneira mais inesperada. “Fora do mundo não há salvação” (E. Eschillebeeckx).
Textos bíblicos: Marcos 16,15-20 Atos 1,1-11 Efésios 1,17-23
Na oração:
Que nossa ascensão seja: romper as cadeias de injustiça e morte;
derrubar toda parede e muro; ir pela vida como samaritano; mostrar os
caminhos ascendentes; oferecer razões de esperança; despertar o instinto
criativo; interpretar os sinais dos tempos; pôr o coração nas
estrelas...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
Nenhum comentário:
Postar um comentário